QUEIXA DAS ALMAS JOVENS CENSURADAS
Natália Correia
Dão-nos um lírio e um canivete
E uma alma para ir à escola
Mais um letreiro que promete
Raízes, hastes e corolaDão-nos um mapa imaginário
Que tem a forma de uma cidade
Mais um relógio e um calendário
Onde não vem a nossa idadeDão-nos a honra de manequim
Para dar corda à nossa ausência.
Dão-nos um prémio de ser assim
Sem pecado e sem inocênciaDão-nos um barco e um chapéu
Para tirarmos o retrato
Dão-nos bilhetes para o céu
Levado à cena num teatroPenteiam-nos os crâneos ermos
Com as cabeleiras das avós
Para jamais nos parecermos
Connosco quando estamos sósDão-nos um bolo que é a história
Da nossa historia sem enredo
E não nos soa na memória
Outra palavra que o medoTemos fantasmas tão educados
Que adormecemos no seu ombro
Somos vazios despovoados
De personagens de assombroDão-nos a capa do evangelho
E um pacote de tabaco
Dão-nos um pente e um espelho
Pra pentearmos um macacoDão-nos um cravo preso à cabeça
E uma cabeça presa à cintura
Para que o corpo não pareça
A forma da alma que o procuraDão-nos um esquife feito de ferro
Com embutidos de diamante
Para organizar já o enterro
Do nosso corpo mais adianteDão-nos um nome e um jornal
Um avião e um violino
Mas não nos dão o animal
Que espeta os cornos no destinoDão-nos marujos de papelão
Com carimbo no passaporte
Por isso a nossa dimensão
Não é a vida, nem é a morte
Nathália Elisea Cotta Correa (Fajã de Baixo, São Miguel, 13 de Setembro de 1923 — Lisboa, 16 de Março de 1993) foi uma intelectual, poetisa e activista socialaçoriana, autora de extensa e variada obra publicada, com predominância para a poesia. Deputada à Assembleia da República (1980-1991), interveio politicamente ao nível da cultura e do património, na defesa dos direitos humanos e dos direitos das mulheres. Autora da letra do Hino dos Açores. Juntamente com José Saramago (Prémio Nobel de Literatura, 1998), Armindo Magalhães, Manuel da Fonseca e Urbano Tavares Rodrigues foi, em 1992, um dos fundadores da Frente Nacional para a Defesa da Cultura (FNDC).A obra de Natália Correia estende-se por géneros variados, desde a poesia ao romance, teatro e ensaio. Colaborou com frequência em diversas publicações portuguesas e estrangeiras. Foi uma figura central das tertúlias que reuniam em Lisboa nomes centrais da cultura e da literatura portuguesas nas décadas de 1950 e 1960. Ficou conhecida pela sua personalidade livre de convenções sociais, vigorosa e polémica, que se reflecte na sua escrita. A sua obra está traduzida em várias línguas.
E uma alma para ir à escola
Mais um letreiro que promete
Raízes, hastes e corola
Que tem a forma de uma cidade
Mais um relógio e um calendário
Onde não vem a nossa idade
Para dar corda à nossa ausência.
Dão-nos um prémio de ser assim
Sem pecado e sem inocência
Para tirarmos o retrato
Dão-nos bilhetes para o céu
Levado à cena num teatro
Com as cabeleiras das avós
Para jamais nos parecermos
Connosco quando estamos sós
Da nossa historia sem enredo
E não nos soa na memória
Outra palavra que o medo
Que adormecemos no seu ombro
Somos vazios despovoados
De personagens de assombro
E um pacote de tabaco
Dão-nos um pente e um espelho
Pra pentearmos um macaco
E uma cabeça presa à cintura
Para que o corpo não pareça
A forma da alma que o procura
Com embutidos de diamante
Para organizar já o enterro
Do nosso corpo mais adiante
Um avião e um violino
Mas não nos dão o animal
Que espeta os cornos no destino
Com carimbo no passaporte
Por isso a nossa dimensão
Não é a vida, nem é a morte
Natália Correia foi uma grande mulher de letras, infelizmente um pouco esquecida.
ResponderEliminarEste vosso site merece parabéns pelo magnifico trabalho que desenvolve.