16 de agosto de 2012

Monólogo da Alma - Texto Concorrente à Prova Literária

Mediante autorização do autor, publicamos este texto participante na Prova Literária que decorreu na Feira do Livro deste ano. Ao autor deixamos aqui o nosso agradecimento.




Eu sou existência.
            Sem mim, a poderosa máquina que representa o corpo humano é uma casca vazia, um navio sem tripulação; a essência incorpórea que me constitui personaliza o meu hospedeiro, traçando-lhe o seu carácter, mantendo acesa a chama da vida, como a corrente de ar alimenta as brasas de uma fogueira.
Eu sou consciência.
            Mantenho activa uma base de dados, tal como um computador, contendo registos que permitem a esta entidade diferenciar o bem ou o mal, o que está correcto e o que representa uma transgressão, balancear as acções e as suas consequências, o que é ético e o que é amoral; o poder de sentenciar, como um deus;  a distinção entre agredir um semelhante ou magoar uma planta, destruir um ser humano ou matar uma formiga…
Eu sou força.
            É isso que impede aquele a quem sirvo de desistir perante os apuros da sua vivência; ainda que que tudo o mais falhe, represento a última muralha de defesa do ser humano, enquanto tal. Esse traço pode definir uma pessoa mais ou menos forte, mais ou menos resoluta, mais ou menos hesitante, mais ou menos confiante…
            Eu sou vários conceitos; espírito, coração, carácter, paixão…
            Mas serei eu imortal?
            Qual será o meu destino quando o corpo no qual eu vivo deixar de respirar?
            O meu eu intelecto analisa neste momento um trecho de um certo poema, esforçando-se por lhe atribuir algum significado e transcrevê-lo, na esperança de obter daí um resultado que seja a resposta que ele anseia, mas as linhas que observa apresentam-se difusas e ele tem alguma dificuldade em abarcar o verdadeiro sentido do seu autor. Através de uma pesquisa efectuada na grande rede que gere, manipula e unifica a informação mundial, ele consegue perceber que as palavras foram proferidas por alguém do sexo feminino, após a sombra da sua humanidade a ter abandonado. E dirige essas palavras a um seu semelhante, de sexo contrário. Mas na verdade, a intenção desses vocábulos é obscura. Terá sido o cetim propositadamente escolhido, para servir uma determinada intenção? E porque comparar o seu corpo a um traço no firmamento? Terá o autor decidido que estes termos comparativos seriam os ideais para esculpir a sua ideia?
            E que ideia imana do conjunto dessas chavões semânticos?
            No meu eu consciente, como uma aurora matinal, nasceu uma afinidade com a mulher do poema. Será que, da mesma forma que ela, após a morte deste corpo físico, as amarras do meu cativeiro quebrar-se-ão e eu serei livre para deambular no Universo, sem tempo contado, porque esse conceito não se aplica nessa dimensão? E quem é a mulher do poema? Terá realmente existido? Será um retrato estereotipado de alguma mulher do círculo de vivências do autor? Ou será uma musa do autor, a sua fonte de inspiração?
            De que trata realmente o poema, senão da morte?
            Por mais que se esforce, o meu eu intelecto não descortina as verdadeiras intenções do autor do poema, mas as conotações inerentes às suas linhas perspectivam algo obscuro, doentio, confuso, porque o conceito de morte está associado a tristeza, pesar, desordem, ainda que para alguns crentes numa nova vida a morte do corpo signifique uma passagem para outra dimensão, onde afinal tudo é belo e paradisíaco ou tudo é tragédia eterna, conforme nós cumprimos com mais ou menos proficiência a nossa missão na terra.
            Acredito que a imortalidade fará parte da nossa matriz. Como ela se manifestará, é algo que me transcende, pois a omnisciência não faz, invariavelmente, parte da minha essência. Talvez seja um pouco como o poeta descreve e eu deambule, acabrunhando alguém deste lado. Não o apreciaria, contudo, mas só Deus saberá no que me tornarei.
            Insatisfeito com a solução encontrada para o desafio proposto pelo poeta, o meu eu intelecto busca por novas energias inspiradoras, mas o rio que percorre é pequeno e dos seus afluentes não brota o líquido regenerador que ele ansiava, mas, como já aqui devo ter mencionado, a teimosia é um traço inerente à sua personalidade.
Lenta, mas decididamente, principia resolutamente a escrever, deixando a outros o julgamento das suas palavras.
            “Eu sou existência.”…
                                                              Vitor Silva (sob o pseudónimo Mário Jardim)


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