18 de maio de 2011

Sugestão de Leitura - Boa Noite, Senhor Soares - Mário Cláudio

Mário Cláudio — Boa Noite, Senhor Soares

Por Emílio Rui Vilar, 


Mário Cláudio — Boa Noite, Senhor Soares. Lisboa: Dom Quixote, 2008.


Fernando Pessoa continua a fascinar. Mário Cláudio não escapou e vai fascinar o leitor com esta revisita ao heterónimo Bernardo Soares. Aliás, um semi-heterónimo, como o próprio Fernando Pessoa o definiu, na célebre carta a Casais Monteiro que aqui vou lembrar: «O meu semi-heterónimo Bernardo Soares, que aliás em muitas coisas se parece com Álvaro de Campos, aparece sempre que estou cansado ou sonolento, de sorte que tenha um pouco suspensas as qualidades de raciocínio e de inibição; aquela prosa é um constante devaneio. É um semi-heterónimo porque, não sendo a personalidade a minha, é, não diferente da minha, mas uma simples mutilação dela. Sou eu menos o raciocínio e a afectividade.»
Bernardo Soares é portanto uma personalidade reservada e enigmática que se esconde atrás do seu criador e com ele se confunde. E, se no prefácio de Fernando Pessoa, ele mesmo, aoLivro do Desassossego, afloram elementos que permitem vislumbrar o seu autor, talvez esses elementos conduzam o leitor a concluir que o traço central da personalidade de Bernardo Soares seja precisamente a sua recusa em expor a circunstância da sua vida.
Tomá-lo para personagem central de uma história, como Mário Cláudio faz neste livro, poderia sugerir uma quase total reinvenção. Mas não me parece ter sido essa a opção do Autor. Preferiu enveredar por um caminho bem mais difícil, mas muito mais consentâneo com o semi-heterónimo de Pessoa.
Para se manter fiel, em primeiro lugar ao criador, Fernando Pessoa, e em segundo lugar a Bernardo Soares, o autor baseou-se em referências dispersas no Livro do Desassossego. E recorreu a um artifício engenhoso, que vai envolvendo o leitor. Um processo de aproximação progressiva, em que o visado (Bernardo Soares) quase sempre joga às escondidas, protegendo a sua privacidade de um olhar directo, mas que atrai irresistivelmente a curiosidade.
Mário Cláudio escolheu para personagens alguns nomes que surgem no Livro do Desassossego, e passo a citar: «Se houvesse de inscrever […] a que influências literárias estava grata a formação do meu espírito, abriria o espaço ponteado com o nome de Cesário Verde, mas não o fecharia sem nele inscrever os nomes do patrão Vasques, do guarda-livros Moreira, do Vieira caixeiro de praça e do António moço do escritório.»
Para narrador da história Mário Cláudio escolheu o moço do escritório, António, talvez por ser o mais novo, o mais ingénuo e por isso mais capaz de ser tocado por aquele ser estranho com quem convive à distância no escritório do patrão Vasques.
Em Boa Noite, Senhor Soares recebe um nome completo — António da Silva Felício — e é um jovem acabado de chegar da província, mais precisamente de Escalos de Cima, concelho de Idanha a Nova, para se empregar como aprendiz de caixeiro no escritório de um armazém de venda a retalho da baixa lisboeta, na prosaica Rua dos Douradores, onde o senhor Soares é tradutor.
Com a simplicidade própria de quem nada conhece, António tudo e todos observa com atenção. E limita-se a descrever o que presencia, como se o fizesse quase apenas para si próprio, sem emitir juízos.
Desde o primeiro momento que o rapaz fica preso à figura do Senhor Soares que, segundo diziam os seus colegas, «embora não se distinga de qualquer outro sujeito, a verdade é que deu sempre mostras de ser um bocadinho esquisito» (p. 18).
No escritório todos sabem que escreve e que é poeta, e sem que António compreenda bem porquê, o certo é que goza de um estatuto especial. Incluindo para o patrão Vasques e para o guarda-livros, o senhor Moreira, que teoricamente ocupa o lugar de chefe do tradutor, mas aceita de bom grado a alcunha de Dom Barómetro que o senhor Soares lhe atribuiu devido à constante preocupação do guarda-livros com as condições atmosféricas.
Ao inserir-se no seu pequeno círculo de relações, António relata pormenores da vida de cada um, sobretudo aqueles que se vão tornando motivo de conversa dos outros. E desenrola perante o leitor um tecido urbano pardo, onde tudo remete para uma Lisboa murcha e tristonha, fechada sobre si mesma, onde nada acontece, nada é dramático, nem exaltante. Uma Lisboa onde o tempo não corre e, cito, «o dia seguinte seria de trabalho, igual aos da semana anterior, e da próxima» (p. 31), e em que uma mediocritas nada áurea todos invade. Todos não. Um ser escapa, um ser especial, que suscita a curiosidade do rapaz, por motivos que ele próprio não entende.
E à medida que avançamos na leitura, a fantástica mestria de Mário Cláudio vai-nos permitir (a nós, seus leitores) apreciar o modo como o rapaz se deixa tocar pela personalidade daquele enigmático senhor Soares. O leitor só tem acesso ao discurso interior do rapaz, que revela a sua total candura, a dificuldade em interpretar a sua própria experiência e os sonhos de viagens que não fará.
Gradualmente, a figura do Senhor Soares transforma-se no principal foco da atenção do jovem António e aquele adulto com quem nunca conversa, aquele senhor que só à saída dirige a palavra ao colectivo rapazes do escritório para lhes dar as boas noites, vai ser a figura de referência da sua juventude privada de projectos, de perspectivas e de formação.
Para além do convívio distante no escritório, António, compraz-se em avistar o Senhor Soares. Observa-o com um fascínio de adolescente. Uma noite nas ruas mortiças da cidade, uma tarde nas hortas onde, seguindo o cortejo dominical que arrasta os lisboetas para o inevitável piquenique ao ar livre, o surpreende, em mangas de camisa a comer figos e a beber pelo «gargalo das garrafinhas» (p. 31), acompanhado por outro senhor, médico, de seu nome Ricardo Reis.
Tal como o avista noutra ocasião, e cito, «acompanhado por um sujeito, seu amigo, que (eu) sabia chamar-se Vicente Guedes» (p. 42), um terceiro misterioso heterónimo, que sempre surge associado a Bernardo Marques e ao Livro do Desassossego. Um belo dia o patrão Vasques manda-o a casa daquele homem que tanto o impressiona e assim surge uma nova expectativa de aproximação que o quase silêncio maladroit do senhor Soares deixa malograr.
De repente, vira-se a página e passaram 52 anos. António recorda vagamente a cidade, o seu antigo local de trabalho, os sons que já não se ouvem… mas o que evoca com mais nitidez é o Senhor Soares, que tão mal conhecera e que afinal tanto o marcara. A sua vida é um arco entre a juventude e a velhice. Como na epígrafe de Shelley que abre o livro: «Youth will stand foremost ever» («A juventude permanecerá para sempre, acima de tudo»).
Evocação pessoana ou alegoria sobre a juventude, ou ambas, este livro é para ler, suavemente, da primeira à última página, sem parar.


(Este texto tem como base a apresentação do livro em Lisboa e foi publicado noJL de 2-15 Julho de 2008.)

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