1 de maio de 2011

O Povo - texto de Eça de Queiroz

O povo 

(Eça de Queiroz)


Há no mundo uma raça de homens com instintos sagrados e luminosos, com divinas bondades do coração, com uma inteligência serena e lúcida, com dedicações profundas, cheias de amor pelo trabalho e de adoração pelo bem, que sofrem, e se lamentam em vão.


Estes homens são o Povo. 


Estes homens, sob o peso do calor e do sol, transidos pelas chuvas, e pelo frio, descalços, mal nutridos, lavram a terra, revolvem-na, gastam a sua vida, a sua força, para criar a pão, o alimento de todos.


Estes são o Povo, e são os que nos alimentam. 


Estes homens vivem nas fábricas, pálidos, doentes, sem família, sem doces noites, sem um olhar amigo que os console, sem ter o repouso do corpo e a expansão da alma, e fabricam o linho, o pano, a seda, os estofos.


Estes homens são o Povo, e são os que nos vestem. 


Estes homens vivem debaixo das minas, sem o sol e as doçuras consoladoras da Natureza, respirando mal, comendo pouco, sempre na véspera da morte, rotos, sujos, curvados, e extraem o metal, o minério, o cobre, o ferro, e toda a matéria das indústrias. 


Estes homens são o Povo, e são as que nos enriquecem. 


Estes homens, nos tempos de lutas e de crises, tomam as velhas armas da Pátria e vão, dormindo mal, com marchas terríveis, a neve, a chuva, ao frio, nos calores pesados, combater e morrer longe dos filhos e das mães, sem ventura, esquecidos, para que nós conservemos o nosso descanso opulento. 


Estes homens são o Povo, e são os que nos defendem. 


Estes homens formam as equipagens dos navios, são lenhadores, guardadores de gado, servos mal retribuídos e desprezados. 


Estes homens, são os que nos servem. 



E o mundo oficial, opulento, soberano, o que faz a estes homens que o vestem, que o alimentam, que o enriquecem, que o defendem, que o servem?
Primeiro, despreza-os ao não pensar neles, não vela por eles; trata-os como se tratam os bois; deixa-lhes apenas uma pequena porção dos seus trabalhos dolorosos; não lhes melhora a sorte, cerca-os de obstáculos e de dificuldades; forma-lhes em redor uma servidão que os prende e uma miséria que os esmaga; não lhes dá protecção; e, terrível coisa, não os instrui: deixa-lhes morrer a alma.


É por isso que os que têm coração e alma, e amam a Justiça, devem lutar e combater pelo Povo.


E ainda que não sejam escutados, têm na amizade dele uma consolação suprema.







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