22 de fevereiro de 2011

Recordar o Zeca (2)

Vida

Há amores que não prestam. O meu amor pelo Zeca foi sempre uma desordem. Não soube estar com ele, raramente o visitei quando adoeceu, não fui ao funeral. Passado quase um ano, encontrei a Zélia e desfiz-me em lágrimas. Fora de tempo. Escondi-me num portal até que o choro passasse, porque ninguém iria perceber. Toda a gente que estava com a Zélia tinha chorado na devida altura. Tinham feito o seu luto, tinham-no acompanhado, tinham guardado dele as coisas imortais. É o único modo de recordar em paz.
Eu não sei recordar, assim como não soube admitir que ele estava sujeito a definhar e a morrer, como nós. Que se acalmem as fúrias ortodoxas: eu não estou a fazer endeusamentos. Quero dizer que os faço, e muitas vezes, e que, sem deuses criados pelo afecto, pelo respeito ou pela imaginação, este mundo seria tão monótono, tão desinteressante como um yuppie a contar-nos o seu plano de vida.
Mas não. Não é por isso que falo assim do Zeca. Pelo contrário, o que nele sempre me impressionoum a ponto de conferir ao meu comportamento este ar inadaptado e doentio naquilo que à sua morte se refere, foi a imensa carga de humanidade que ele trazia consigo, que sobrava, para que à volta dele se alimentassem os que, mobilizados por um mesmo ideal, sofriam da secura que provocam a convicção excessiva e a tolerância.
A grandeza do Zeca era terrena e alegre e, acima de tudo, plena de inteligência. A luz que ele acendia em sua volta era uma luz sem dogmas, uma esperança tão limpa que às vezes não cabia na pequenez política. Com a revolução dele é que se havia de passar de século. Para que, além de justiça e liberdade, haja, isso sim, a boa gargalhada, o perfeito pedaço de poema, a busca, fora e dentro, do erro e do prazer.
Vi-o cantar a meio de um esgotamento, vigiado por pides. Acho que o vi com medo, e ele foi magnífico. Vi-o preocupado porque ríamos alto ­era um grupo de jovens levados pelo Fausto - e os filhos, pequeninos, podiam acordar. Vi-o chegar à porta da colectividade onde ensinava à noite, para nos dizer «olá» e voltar para a aula. Vi-o a correr descalço sobre a terra, entusiasmado e a pegar-me o entusiasmo pelas terapias alternativas. Vi-o, muito doente já, sem forças, a ler a poesia de S. João da Cruz. Como querem vocês que eu me ponha aqui a falar dele com elogios, como num obituário?
Olhem: nessa manhã em que ele morreu, eu passei num centro comercial. Foi lá que soube. As empregadas das «boutiques» estavam todas de preto e com cravos ao peito. Nos corredores e lojas só ressoava «Grândola». Sim: as empregadinhas das «boutiques». Sim: num vulgar e fútil centro comercial. Onde há gente novinha que não se interessa nada por História, que quer curtir e consumir por­que essa é a linguagem do gozo que conhecem. Gente que assim me deu essa notícia pela mais inesperada e comovedora das vias. Elas puseram luto e flores vermelhas porque o Zeca morrera, mas o que eu percebi foi que ele estava mais vivo do que qualquer pessoa sujeita às leis do tempo.
O ano passado organizou-se uma homenagem em Setúbal. Convidaram-me para uma conversa acerca do tema «Solidariedade». Pela primeira vez na minha vida, tive de pensar antes no que iria dizer. Porque uma só palavra, e tão séria, assus­tava. Felizmente, atenderam à minha timidez e chegámos ao fim sem que eu interviesse.
Quando saímos, respirei, aliviada. O Zeca, a filosofia do Zeca, a criatividade do Zeca, encontravam-se na rua. Nas ruas. Onde os jovens organizavam tudo, passavam com cadeiras, com festões de papel, com fatos de palhaço, e havia teatro,  música, e encontros, e discussões, e fome. Uma espantosa condensação de vida. Não há morte que chegue para tantos que respiram o ar que ele respirou.
 
Hélia Correia 
 

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