11 de janeiro de 2011

Histórias da Feira do Livro


O vento frio do Terreiro do Sítio cortava-nos a cara durante a noite quando fazíamos turnos de guarda aos pavilhões da Feira do Livro. Nesse tempo, os livros eram leves, pesavam menos do que agora. Um pacote deles carregava-se com uma força nova. Era uma alegria estender os livros nas bancadas, recolhê-los, voltar a pô-los. Cada um que se vendia significava mais uma vitória contra o fascismo, o obscurantismo, o analfabetismo, a favor da Revolução.
O 25 de Abril acordara ainda mais nas pessoas o desejo de obter livros até aí proibidos pela Censura: de autores como Marx, Gogol, Tchekov, Sartre, Lenine, Soeiro Pereira Gomes, Henry Miller, Rosa Luxemburgo, Nabokov, Engels, Ismail Kadaré, José Cardoso Pires, Arrabal, Marcuse, Jorge Amado, Genet, Gorki, Brecht, tantos outros, um mar de livros.
A Feira andou aos tombos por diversos lugares –  junto ao Elevador, na Praça dos cafés, na Biblioteca,
no antigo Operário Marítimo (ao lado da antiga Lota, hoje Centro Cultural e actual local da Feira) - e de todas elas permanece a memória dos encontros, das conversas, dos testemunhos de leitura, das novidades, dos prémios literários, das crianças a ler pelos cantos. Atéos roubos ( falemos antes de descuidos) eram de imediato perdoados. Se os roubavam era porque os iriam ler!
Algumas caras de veraneantes em férias foram ficando conhecidas. Voltavam no ano seguinte, em Agosto, e visitavam de novo a Feira. Muitas dessas pessoas confessavam que se guardavam para as compras de livros na Nazaré, aproveitando o desconto. Não adquiriam livros em mais nenhum lado. No final de cada Feira, contava-se o dinheiro das receitas e comprava-se dezenas de livros que ficariam a pertencer ao valioso espólio que é hoje a Biblioteca da Nazaré.
Os anos foram passando, outras gerações vieram juntar-se aos mais velhos, a Feira continua após
30 anos de vida. Os caixotes são certamente mais pesados, comprar-se-ão talvez menos livros porque a vida está cara e o espaço das casas não é elástico. Mas, apesar das dificuldades, dos cansaços,
das desilusões por algumas editoras não responderem à chamada como se queria, das noites a confirmar guias e facturas, dos jantares à pressa, do desfazer e embalar caixas, valeu sempre a pena fazê-la e vale a pena continuar a lutar por ela.
De entre as muitas histórias da Feira fica-me aquela amiúde contada por quem esteve ligado
a ela. A do casal de ribatejanos que confrontava os preços dos livros com o tamanho e número de páginas. Avaliava-os, sentia-lhes o peso com as mãos, hesitava na escolha, discutia de mansinho entre si qual deles levar tendo em conta os dias de férias e o tempo para o ler estirado à sombra de uma barraca.
Acabou por se decidir pelo mais volumoso, nada menos do que 800 páginas de leitura. Era o maior
romance da Feira, o “Exodus” do norte-americano Leon Uris. O casal saiu feliz com o livro na mão. Deve
tê-lo bem guardado lá em casa, na estante da sala, como um troféu do tempo em que os livros eram em
escudos e baratos!

Jaime Rocha

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